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EM TEMPOS DE COVID-19, LEI ESTADUAL “VALE MAIS” DO QUE LEI MUNICIPAL?

por Becker Direito Empresarial
02 de Abril, 2020

Por Marilia Bugalho Pioli, advogada, sócia do escritório Becker Direito Empresarial

No intuito de minimizar os riscos – e estragos – da pandemia do COVID-19, está havendo uma enxurrada de normas, principalmente decretos, emanados das esferas municipal, estadual e federal. Como existe divergência sobre o que se pode e o que não se pode fazer entre os decretos vindos dessas três esferas, provoca-se confusão na condução das atividades empresariais. Se a norma estadual não proíbe o funcionamento de fábricas durante o período de quarentena, mas a norma municipal proíbe, a fábrica pode ou não pode funcionar? São questões práticas – e reais – como essa que nos motivam a apresentar rápidos esclarecimentos, todos baseados na Constituição Federal e em decisões judiciais. A solução da dúvida gira em torno da questão de competência, ou seja, quem pode legislar sobre o quê. Como o assunto é de um “juridiquês maçante”, tentaremos aqui apresentar a questão da forma mais simples possível, sem entrar nas discussões doutrinárias, inclusive sobre nomenclatura, tipos e classificações das competências. A divisão mais simples é a que separa a competência entre privativa (restrita apenas a um dos entes federativos) e a competência concorrente, quando mais de um dos entes pode legislar sobre a matéria. Quem define a competência é a Constituição Federal. Na competência concorrente, cabe à União legislar sobre normas gerais. Dentro da competência concorrente, os Estados e Municípios têm competência complementar, o que significa que os Estados e Municípios podem complementar a norma geral, editando normas que adicionem pormenores à regra primitiva federal. Nessa complementação, os Estados e os Municípios só podem tratar de questões que atendam às suas peculiaridades regionais/locais, mas sem contrariar a norma federal. Lei estadual e lei municipal não podem contrariar a lei federal (norma geral), mas entre a lei estadual e a lei municipal não existe hierarquia, ou seja, a lei municipal não está “abaixo” da lei estadual, o que significa que a lei estadual não é “mais importante” ou “mais válida” do que a lei municipal. Não se trata de “obediência” hierárquica. O que resguardada a competência do Município é o interesse local, que é exatamente o fator que gera a predominância do interesse municipal. A partir disso, se a lei municipal é mais restritiva do que a lei estadual, há que se verificar se há interesse local apto a justificar a maior restrição e se esse interesse não contraria a lei federal. Se houver a justificativa, a lei municipal é plenamente aplicável, ainda que a mesma restrição não haja na lei estadual. Importante reiterar: não existe hierarquia entre lei municipal e lei estadual, então a lei municipal não deve “obediência” à lei estadual e nem “vale menos” do que a estadual. Passemos a um caso real. O Município de Rondonópolis, no Estado do Mato Grosso, editou alguns Decretos determinando, em caráter obrigatório, a suspensão do funcionamento do comércio local e das indústrias, entre outras restrições devido à pandemia do Coronavírus. O Governo do Estado, que também editou Decreto, não vedou o funcionamento de indústrias. Por conta disso, a Associação Comercial, Industrial e Empresarial de Rondonópolis impetrou Mandado de Segurança pedindo a suspensão das restrições do decreto municipal não existentes no decreto estadual. A situação em Rondonópolis, portanto, é a seguinte:
  1. há uma norma federal que delimita as atividades essenciais e que estabelece que qualquer medida a ser adotada para conter a pandemia do coronavírus deve resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais (Lei no979/2020 e Decreto no 10.282/2020;
  2. a norma estadual permite o funcionamento de qualquer estabelecimento, garantidas as normas de segurança, prevenção e combate ao coronavírus;
  3. há uma norma municipal que não permite o funcionamento de todas as atividades enumeradas essenciais pelo regulamento federal.
A saúde pública é matéria cuja competência para legislar é concorrente. Assim, cabe à União a edição de normas gerais, deixando aos Estados e Municípios a competência de acordo com os seus interesses, desde que não contrariem a lei geral. O Município de Rondonópolis poderia, portanto, adotar as medidas que entendesse pertinentes considerando os interesses do Município, analisando a peculiaridade da cidade quando da adoção de medidas para conter a pandemia. No caso, o Município publicou os decretos atacados visando à saúde pública, levando em consideração a peculiaridade do Município, que é restrito em leitos de UTI e respiradores, o que significa que o gestor público municipal editou normas visando atender os interesses da sociedade local. Por isso, nas palavras do juiz que julgou o pedido liminar no Mandado de Segurança, “não há razão para que a norma estadual sobreponha a norma municipal, de modo que deve prevalecer os decretos municipais vigentes”. Com isso, demonstra-se claramente que as normas municipais não estão adstritas às normas estaduais. Em palavras mais simples, as normas municipais não têm que “obedecer” as normas estaduais. Apesar disso, a liminar foi parcialmente concedida porque não obstante a existência do interesse local, as leis municipais não podem contrariar as normas gerais federais. “No caso dos autos, as normas municipais em questão (Decreto no 9.407, 9.422 e 9.426) contrariam a norma geral (Lei Federal no 13.979/2020 e Decreto no 10.282/2020)”, afirmou o juiz. Como a lei federal resguardou o funcionamento das atividades essenciais, a lei municipal não pode proibir o funcionamento dessas mesmas atividades. A liminar foi então parcialmente concedida porque a norma municipal contrariou a norma federal, e não porque teria contrariado a norma estadual.

A competência legislativa é assunto espinhoso que necessita análise detalhada no caso concreto, então ao deparar-se com decretos contraditórios, ou mesmo em caso de intimações de órgãos públicos exigindo o fechamento das atividades de sua empresa, socorra-se de sua assessoria jurídica, pois eventualmente poderá ser necessário impetrar Mandado de Segurança para fazer valer a ordem constitucional das competências.

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